Yes, the Leash is now a Chew Toy
8 min readMay 23, 2023

CELESTE — SUBINDO A METÁFORA

“and I knew that I know something no one else knows; I knew that I knew something beautiful and wordless, and if I ever figure out how to say it, I’ll say it immediately. I promise I won’t keep it”.

-Tim Rogers

Escrever sobre videogames impõe diversos dilemas metodológicos logo de início. Devidamente ignorada a questão cíclica que pergunta se videogames seriam Arte, falar da experiência estética na relação com um jogo envolve uma configuração interpretativa única, mesmo se nomearmos os videojogos como apenas “objetos de estudo”. Para estudá-los, seria necessária uma hermenêutica própria, que combine os diversos elementos do game na experiência simultânea do “jogar”.

Como escrever, então, sobre um videogame? Aqui entendo o texto como transposição material (mesmo que virtual) da fala, submetido a vicissitudes similares às dos “atos de fala”(como diria minha amiga, amante de Butler). Um texto trata de uma obra (ou várias) criando uma versão operacional dela(s) em que suas teses e conceitos façam sentido, em um campo semântico próprio. E isso não seria necessariamente um problema, mais debates poderiam levar à superação de certas miopias, e positivamente construiríamos nossa utopia crítica. O real obstáculo está na distância entre o que eu falo e o outro escuta: ao falar, esbarramos em um fora-do-sentido que pode sempre transformar a mensagem em sua recepção. Como escrever então, sobre videogames, se a linguagem é inconsistente e estamos fadadas à ambiguidade?

Por essas e outras questões, devo admitir que o conteúdo crítico de meu entendimento sobre Celeste é bastante escasso. Buscarei aqui apresentar inicialmente quais cartas estão na mesa quando falamos deste jogo de plataforma, desde o refinamento mecânico à uma estética da conscientização, e tentarei captar um possível algo além-disto que os jogos podem nos comunicar.

Premissa

Em Celeste, controlamos Maddeline, uma jovem garota transgênero que decide escalar a Montanha Celeste, procurando encontrar uma saída para suas constantes crises depressivas. O jogo então consistirá em desafios de plataforma 2D limitados em telas(seções dos “mundos”, cuja junção constitui a totalidade dos levels) , que podem ser repetidas infinitamente. Comandamos Maddeline através dos verbos “andar”, “pular”, “escalar” e “dar um dash”. Há uma química muito precisa na combinação destes elementos nos desafios: ainda que existam diversas resoluções para um obstáculo, todas “fazem sentido”. Em entrevista ao podcast insert credit, a desenvolvedora Maddy Thorson conta que sua equipe substituiu o pulo duplo pelo dash para garantir maior precisão à movimentação, e os participantes teorizam sobre a importância desse aspecto para os plataformas 2D: a visibilidade e transparência do jogo sobre o posicionamento do jogador é o que possibilita que os desafios pareçam tão técnicos, ou seja, a precisão pode ser exigida porque há um setting que a torna perfeitamente possível.

Se pudesse resumir em uma frase, diria que Celeste é um jogo sobre movimentação em espaços hostis, e a maior parte do prazer do jogo reside em “solucionar” cada pequeno desafio, à sua maneira. Assim, a recompensa por jogar Celeste é constante, apesar de descontínua e espaçada por esses momentos em que ficamos travadas em uma tela. Os mundos, ou capítulos, não são muito grandes, e uma jogadora medíocre como eu conseguiu terminar o mais difícil deles em duas horas. Podemos sintetizar esse loop da seguinte maneira: as plataformas de Celeste nos punem na mesma medida que nos viciam.

Eu não quero mais saber de depressão nos meus videogames

Cjthex é ume youtuber que se ocupa em construir uma epistemologia à altura das obras de arte de nossa época, principalmente no que diz respeito à possibilidade de uma “crítica objetiva”, à ligação da Arte com “verdades transcendentais” e o imperativo ético da produção artística. Em seu vídeo “Stranger Things and The Meaning of Life”, Cj tenta decompor uma cena viral da série da Netflix, buscando explicar seu visceral efeito estético, efetuando um movimento dialético que nega explicações provisórias para progressivamente se aproximar do “umbigo da cena”. Meu foco aqui será na segunda explicação, muito relevante para a discussão sobre Celeste, em que Cj trata do nível metafórico da cena. “What does it meaaaannn”, elu questiona. Seu maior obstáculo? A sessão de comentários da cena no canal da Netflix no Youtube. “When you’re depressed and you watch this scene, it hits even harder because it’s like a metaphor for what’s battling your mind”, diz um comentarista. “For someone who has anxiety and depression this scene really gets to me it helps me fight my anxiety and depression”, afirma outro.

Deixando de lado se esses comentários foram escritos por pessoas reais ou por robôs de sobretudo e bigode, ocupemo-nos dos problemas filosóficos que eles impõem. Mesmo que, como bons esnobes, rebaixemos ao máximo as séries da Netflix em nossa “hierarquia da arte de verdade”, será que estas interpretações estão à altura do objeto interpretado? Elas parecem atribuir uma grande profundidade a Stranger Things: aparentemente, qualquer técnica cinematográfica poderia ser subtituída por um texto de PR sobre transtornos mentais. “No final os idiotas somos nós que assistimos”, diz a sabedoria popular brasileira. Como boas discípulas de Susan Sontagg, diríamos que os comentários exageram a importância do conteúdo de uma obra, perdendo de vista por completo a forma pela qual esse suposto conteúdo é transmitindo. Sontagg defendeu um algoritmo quase lacaniano para a arte: Forma/conteúdo, ou seja, o que realmente ocorre e aquilo com que realmente interagimos é sempre o aspecto formal da arte. Se uma obra é realmente “sobre depressão”, é importante que ela nos faça sentir isso, de modo sensorial mesmo, diminuindo assim a importância do “falar sobre”. O que concluir, então, sobre a história de Celeste?

Busque vídeos que elogiem Celeste como um clássico moderno, que tentem precisar o que faz desse jogo especial. Tendo entrado em contato com alguns deles, minha impressão é que estes fãs estão ligados a uma estética da conscientização, em que a obra ensina algo àquele que interage com ela, de maneira mais ou menos didática. Celeste se destaca, então, por tratar diretamente do tema da saúde mental, passando uma mensagem de auto-aceitação perfeitamente agreeable. A jornada da canadense Maddeline parte de um lugar onde a mesma sempre nega sua própria personalidade em uma espiral de auto-rejeição, para no final aprender a “amar a si mesma”, ainda que não livre de contradições (como se torna claro no epílogo). No nível da transmissão, eu diria que Celeste quer falar de saúde mental como um desenho animado, ainda que a história do jogo entre em combustão espontânea ao se confrontar com algo como Serviço de Entregas da Kiki. “O que você não entendeu”, diria meu espantalho de youtuber, “é que os obstáculos da montanha são uma Metáfora para a magnitude da dificuldade das situações cotidianas para a Maddeline”. Neste ponto, poderemos recuperar Sontagg — se há uma Metáfora, deduzimos que a montanha é um significante (Forma) que aparece no lugar de outro (conteúdo). Devemos seguir nossa investigação, então, para os elementos formais que possibilitama conexão entre as duas coisas.

Na minha visão, a história de Celeste é um arremedo que complementa as mecânicas do jogo sem nunca conseguir se integrar a estas. Acompanhamos o desenvolvimento pessoal da protagonista em cutscenes no início e final dos capítulos, com breves diálogos entre personagens durante a gameplay. Os dois (história e mecânicas) se apresentam como apartados. Meu ponto aqui é que não há problema no “pitch de elevador” da história, nem nos temas tratados. Meu conflito surge da forma como o enredo se desenvolve, de maneira apressada, sem tempo de ruminar sobre as contradições encarnadas em Maddeline. Sua redenção parece quase gratuita. Talvez se encontrássemos mais personagens no percurso na montanha, entenderíamos Maddeline melhor, e a superação de seus conflitos seria mais recompensadora. Mas aí eu estaria engajando em uma crítica beirando o “if only we could talk to these creatures”. As soluções poderiam ser muitas, o que me ocorre é que da forma que está falta carne na história, parecendo capenga perto da grandeza de Celeste.

Estranhando* Maddeline, o jogo como Estrogênio Injetável

Ok, é hora de falar do elefante na sala. Existe um aspecto de Celeste que é inescapável em sua recepção, nas discussões nas redes sociais, e até nas mesas de bar: Celeste é um jogo muito trans. De “transgênero” mesmo. Começo com uma anedota: quando estava viciada no jogo, fui uma festa em um bar aqui de Belo Horizonte, e o assunto chegou nos videogames. Comentei o quanto estava amando Celeste, e minha amiga prontamente retorquiu: “se você gostou desse jogo, pode começar a injetar estrogênio”. Este videogame teria, então, um importante papel no que a comunidade chama de “quebrar o ovo”: o início do processo de descoberta do gênero trans. Mas por que esse status se fortaleceu tanto? Elencarei alguns pontos relevantes para essa “leitura trans” de Celeste.

Não é nada simples explicar por que a “comunidade” trans abraça tanto certos jogos. Um dos mais universalmente aclamados entre as transfems é…Fallout New Vegas. Em comparação, Celeste parece simples de explicar: a protagonista é trans, está em profundo conflito com sua própria identidade (e sua imagem no espelho!). O jogo é bastante fofo, apesar de não ser infantil (em uma cena, Maddeline afirma secamente que “bebe para lidar com a dor”). Talvez a maior potência do jogo e o motivo de sua recepção queer possa ser encontrada em um certo contraste, entre o estilo pixelart colorido e a feiura das emoções exibidas por Maddeline, somada ao punitivismo do level design. Para categorizar justamente Celeste, eu devo antes confessar que não tenho as credenciais de jogos de plataforma para posicioná-lo em uma continuidade histórica (tenho certeza que Mario foi uma influência) mas ele é comumente agrupado e flutua neste espaço dos jogos indies “fofos” (switchcore?). O que acontece é que Celeste é barrado na porta da festa dos “wholesome games”, num curto-circuito realizador por sua natureza sádica para com o jogador, além de sua tematização explícita da depressão.

O Queer é, em algum nível, o infamiliar da ordem heteronormativa. Existe algo na sinceridade de Celeste que é reconhecível e ao mesmo tempo nos desconcerta profundamente. Por que é esse o jogo em que é necessário morrer dezenas de milhares de vezes para completá-lo? As cores brilham tanto, mas a fricção é tão necessária que a música não recomeça a cada morte, para dar uma impressão de continuidade entre as dezenas de tentativas. O jogo com certeza não é frustrante, e as opções de acessibilidade ajudam muito. A dificuldade é personalizável; eu, portanto, tentei personalizá-la, perdendo minha carteirinha Gamer no processo, negando a “experiência genuína” do jogo. Para deixar meu veredito sobre dificuldade nos jogos, como quase uma nota de rodapé, direi que sim, todos estamos numa luta por autenticidade. Derrotar jogos em seu nível mais extremo de dficuldade simplesmente não está entre minhas formas de subjetivação favoritas. O que efetivamente incomoda em Celeste é seu caráter intrinsicamente queer, aparentemente palatável mas que, ao ser digerido provoca (não por acaso) um grande estranhamento.

Impacto

Esse é o momento da crítica em que eu cuspiria grandes platitudes sobre o jogo para dar a sensação de que houve uma grande jornada que está chegando ao seu fim, que algo de substancial foi feito. Entretanto, eu ainda não cheguei em uma síntese da minha experiência com Celeste para justificar um momento desses. Tudo que eu posso fazer é falar do impacto do jogo de um modo mais geral.

Acho indisputável que Celeste é um clássico contemporâneo. Tim Rogers diria que é porque “os desenvolvedores entenderam exatamente o que fazia Mario ser bom”, Cjthex afirmaria que a razão é “a aspiração do jogo a atingir verdades divinas”, eu defenderia que há algo no balanceamento das mecânicas e sua aplicação no level design que é tão polido que nem as palavras podem capturar. No entanto, no fim do dia, estaríamos todas falando do mesmo algo, indizível e inefável, algo celestial, beautiful and wordless. Isso é Celeste

*Estranhar, proposta de tradução brasileira para a expressão anglófona to queer, um método de interpretação baseado não na análise das identidades, mas em seu modo de produção mesmo enquanto ficção. “Estranho” pode parecer uma forma de neutralizar o queer, mas para verificarmos seu efeito na heteronormatividade, é só lembrarmos da clichê objeção à homossexualidade: “tá me estranhando?”