Yes, the Leash is now a Chew Toy
7 min readOct 14, 2023

"Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam narrar algo direito? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que podem ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um pronome oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?"
Benjamin, Walter. Experiência e Pobreza.

Benjamin, no início de seu ensaio, profere estas palavras. Tentarei aqui argumentar que essa perda de experiencia notável do início do século XX se repete no início de nosso século XXI (por razões econômicas, políticas, libidinais). Dessa forma, espero localizar o desejo do estilo Hyperpop no contexto dessa nova farsa, catalizada pela crise de 2008 e pela catástrofe climática em curso, ambas gestadas por um mundo neoliberalizado. O mundo hoje é feito de matéria plástica: nossos sonhos, então, manifestarão sujeitos feitos do mesmo plástico das ilhas do oceano.

Benjamin segue. Para falar de um mundo marcado pelo período 1914-1918, afirma que "nunca houve experiências mais radicalmente desmentidas que a experiência estratégica de guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes [...] num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano". O humanismo heroico do Renascimento encontrava sua derradeira culminação, na perda da experiência que deveria sustentar seus valores (perda causada pelo conteúdo político social dos próprios valores).

Aqui podemos nos servir da noção zizekiana de um Universal Ideológico: categorias que mantém sua consistência pela dependência de uma exceção, com potencial para causar um circuito circuito no Universal ele mesmo. Qual Razão creditada à estratégia militar e à gestão moral da máquina-Estado sobrevive aos corpos boiando nos fronts e ao desprezo pelo povo pobre de líderes como Nicolau, o Sangrento? Que ser humano excepcional é esse que degrada seu corpo na inanição recorrente da vida paupéria?

A resposta, ainda que aviltante, é que o ideal de ser humano excepcional necessita de pessoas pauperizadas disponíveis para serem exploradas e expropriadas em sua força de trabalho. A Razão sobrevive por meio das distorções evidentemente irracionais que produz, não apesar delas. Mas essa é uma manobra altamente contraditória. Se reconhecemos que a redução da população majoritária (estatisticamente falando) à uma massa de sujeitos explorados é o que cria as condições do fim da exploração em si, podemos defender também com alguma segurança que fenômenos como o shellshock effect são progenitores de uma reação contra a raiz do empobrecimento da experiência, cria-se um "clima terrível" de potencial agudização da crise da Razão, visando sua suprassunção.

Assim, arrisco caracterizar o período de que Benjamin fala como um rompimento da relação do sujeito com o sentido. Esta é a primeira ligação do objeto bejaminiano com uma manifestação artística pós-moderna (me desculpem) como o Hyperpop. Se a Moral, a Razão e o Humano se horrorizaram diante de suas consequências após a Primeira Grande Guerra, introduzindo toda sorte de rachaduras no aparato simbólico secular, a unicidade da experiência só se precarizaria com o aprofundamento progressivo das contradições do capitalismo.
O que é o sentido, originariamente transmitido pelos antepassados principalmente de forma oral, no mundo da hiperdisseminação dos signos e hiperconsumo de estímulos, no mundo da corporatização e mercantilização de toda a vida, em que a demografia ouvinte de Beatles (ainda hoje considerados o apogeu da música radiofônica) são os velhos reacionários que desprezam as dissidências de gênero e o Welfare State?

Os efeitos disso na produção artística (e na minha argumentação volto meu olhar para a criação musical) são de amplo conhecimento. A cultura underground, em um diagnóstico superficial mas verdadeiro, tendeu a sempre denunciar o fora-de-sentido acidental e inevitável das gerações que a antecederam, em um ciclo de destruição criadora, em que o ímpeto explosivo da negação do que seus pais consumiam foi seguido da reunião dos cacos nas bricolagens de suas propostas estéticas. O escárnio e a reverência aqui andam de mãos dadas em sua natureza cíclica, mas algo se mostra muito evidente: a experiência coletiva (que é a formação de uma relação estável do sujeito com o sentido de toda sua experiência) que Benjamin via morrer já está a esse ponto pulverizada por completo. Há uma impotência ímpar do velho servir de amparo para o novo.

Claro, sempre haverão formas de se recuperar o passado da música, mas essa revitalização nunca mais constituiu força suficiente para alçar vôo e se coadunar em uma hegemonia cultural para além do nicho. Hoje vemos diversos zumbis surgirem, como a infame Nova MPB. Aqui falo de outra coisa. Músicos como Eichii Ohtaki realizaram o movimento em que estou interessada, em seu caso recuperarando o brilhantismo das composições de Brian Wilson como pouquíssimos. A sociedade japonesa, com uma miríade de cenas musicais altamente prolíficas em 1981 (e ainda assim doente de uma miséria espiritual inegável, que tinha a ver com uma única religião: a ideologia neoliberal), recebeu A LONG VACATION não com aclamação geral redentora, mas com apreciação resignada. Muitos salarymen compraram o vinil de Ohtaki, vários escutaram-no por horas a fio, mas a potência artística do compositor, instrumentista e cantor deu lugar novamente a uma experiência pulverizada. O lugar do vazio dominava toda e qualquer produção da arte. E a impossibilidade da continuidade de uma tradição a partir da memória coletiva, elaborada por Benjamin, se materializa em letras como

with pouted lips and a look on your face like you knew something that I didn't//you kept the very notion of farewell hidden in your pocket//polaroid at the end of the desk; I need only speak a word to the photograph//and time passed away from me comes back, painful, yet dazzingly brighter than my now.

These monochrome memories, someone please colorize them!//come stand beside me one more time; make me happy again, beautiful in-color girl.

Memórias monocromáticas e sua colorização. Chegamos então à tarefa monumental de descrever de maneira justa o Hyperpop e sua posição estética diante da ambivalência do par sujeito/sentido em sua época. Consideremos: se estamos evocando a imagem de uma destruição-criação cíclica, em que a negação e a recuperação se complementam, o caráter ético do hyperpop se mostra deveras propositivo, estando como que do lado da recuperação, ao lançar seu olhar sobre criações musicais de 10-20 anos pregressos e interpretar nestas um mais-dizer. Dizer esse que não pôde ser acolhido neste momento anterior.

Há algo de fortemente contra-intuitivo nesta minha hipótese. A potência negativa do Hyperpop diante da música popular da sua época é incontornável, principalmente no que diz respeito a uma certa racionalidade dos timbres e dos ritmos, do "bom gosto" consensual. Sim, há uma boa dose de escárnio, mas este vem na forma da pós-ironia, ou seja, de maneira dissimuladamente celebratória. "Chaves, seu idiota. A voz aguda [...] ressignifica o passado a partir de uma linguagem nostálgica que resgata os anos 2000", nos lembra Seu Madruga no vídeo Seu Madruga fã de 100 gecs. Se o pop será radicalizado em seu potencial idílico(e ao mesmo tempo desvelador - acidental ou não - da identidade-mercadoria do artista musical) nas seminais compilações do selo PC Music e posteriormente em seu filho duplamente mutante (orgulhoso de suas origens em níveis estratosféricos) denominado Hyperpop, isso JAMAIS se traduzirá numa rejeição de Madonna, Kesha e Carly Rae Jepsen (a última notoriamente participará do PC Music Vol. 2 e do clássico Hyperpop Pop 2, apoiada na produção des bizarramente talentoses Danny L Harle, EASYFUN e A.G. Cook, todos igualmente paradigmáticos do que estou identificando nesse momento de nascimento).

Ou seja, devemos ousar dizer: o Hyperpop retira sua força estética da celebração de criações da música pop radiofônica, e por quê? Esse casamento se mostra frutífero porque o que importa no pop dos anos 2000 e 2010 não é a sua aparência camp, e sim a sua imaginação de um Futuro. Está manjada a tese fischeriana de que a queda do muro de Berlim desaguou na morte da imaginação do Futuro como possibilidade do verdadeiramente Novo. Ou seja, uma desintegração total da relação do sujeito com o sentido por experimentar o tempo estático do capitalismo vitorioso do século XX. À despeito disso, os anos 2000 ao início dos 2010 inventam uma cultura plasticamente utópica. As cores, os eletrônicos, as melodias, é a verdadeira realização da Promessa da técnica como vetor da humanização. O futurismo é o tempo do agora, chegamos ao Novo Milênio, o mundo está prenhe de vida e com certeza nenhuma crise capitalista global vai impossibilitar a perspectiva de futuro de nossa geração. Ops.

Aqui, novamente, os detalhes não me cabem e as linhas gerais são amplamente conhecidas. O que me importa é arriscar mais uma hipótese: a perda da experiência vista no ensaio "Experiência e Pobreza" é também um rompimento da relação do sujeito com o tempo.

"Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? [...] essa pobreza não é apenas pobreza em experiências privadas, mas experiências da humanidade em geral. Surge assim uma nova barbárie. Barbárie? Sim, de fato. [...] Ela o impele [o bábaro] a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco [...] os grandes criadores [...] queriam uma prancheta, foram construtores. [...] Também Einstein foi um tal construtor [...] [se interessando apenas por] uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as experiências da astronomia. Os artistas tinham em mente esse mesmo 'começar do princípio' quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas"
colagem de trechos das páginas 2 e 3 de Experiência e Pobreza.